domingo, 23 de agosto de 2020

Memórias de Charleston - parte 1

    Agora que o medo da morte me assombra todos os minutos do dia (culpa do COVID-19) fico vendo flashes da minha vida passando pela minha cabeça o tempo todo. 
    Se tem algo que tenho certeza nesses últimos meses sobre o filminho que se passa nos minutos que estamos à beira da morte é que ele é extremamente feliz, de momentos mágicos e maravilhosos do nosso passado. 
    Bom, e um dos momentos felizes e marcantes que ficam rondando minha mente são de 7 anos atrás quando morei em Charleston, na Carolina do Sul, EUA. Não sei se tem relação com o frio do outono ou com a vontade de estar em outro lugar, mas vou colocar meus pensamentos e lembranças de maio de 2020 aqui.

Então vamos lá!

(ctrl+c e ctrl-v do arquivo Word de maio de 2020)


Capítulo – “Where are the plans we made for two?”

“I'm at a payphone trying to call home
All of my change I spent on you
Where have the times gone, baby it's all wrong
Where are the plans we made for two 

Yeah, I, I know it's hard to remember
The people we used to be
It's even harder to picture
That you're not here next to me 

You say it's too late to make it
But is it too late to try
And in our time that you wasted
All of our bridges burned down 

I've wasted my nights
You turned out the lights
Now I'm paralyzed
Still stuck in that time
When we called it love
But even the sun sets in Paradise” 

Payphone, canção de Maroon 5. 


    Tudo começou com uma arrumação no armário. As roupas penduradas estavam se acumulando e eu precisava decidir o que doar e o que valia a pena manter pendurado no armário abarrotado de roupas. A regra era fácil: “se você não usa há mais de 12 meses, provavelmente você não vai usar nunca mais”. Difícil mesmo era colocá-la em prática.

    Pego um casaco sobretudo acinturado preto de veludo. Caraca, eu comprei ele em Charleston há 7 anos atrás, logo no segundo dia na cidade, dia 4 de janeiro de 2013. Foi uma pechincha, uns 20 dólares. O dólar valia uns R$2,20, então era realmente barato. Um casaco desses no Brasil custaria uns US$100,00 no mínimo. Olho bem para o casaco e logo me vem à mente a sensação de deslumbramento e frio na barriga de estar totalmente sozinha em um lugar totalmente novo. Era meu segundo dia na cidade e eu sai andando pela rua principal de Charleston, King Street, para conhecer a cidade antes das aulas começarem.

    Estava um frio congelante para uma brasileira do Sudeste acostumada à mínimas de 9 graus apenas de manhã bem cedo e nos dias mais frios de inverno. Nesse dia deveria estar uns 5 graus no meio da tarde e meu nariz e minhas orelhas estavam congelando, sensação que eu nunca havia experimento antes, ou seja, as roupas que eu trouxera não eram quentes o suficiente, então corri para a primeira loja barata que encontrei.

    A loja era enorme e passei um tempão olhando todas as roupas e sapatos. Todos eram muito baratos e cavando bem deu para encontrar muitas roupas e sapatos bonitos e baratos. Tenho todas as roupas até hoje, 7 anos depois. Só os sapatos que não aguentaram tanto uso.

    Usei muito esse casaco acinturado que tenho na mão quando estava lá, depois no Brasil devo ter usado algumas poucas vezes logo quando voltei. Por ser um casaco de dias bem frios, era difícil ter uma oportunidade boa para usar. Fui trabalhar com ele algumas vezes e saí algumas noites com ele também, mas depois que engravidei em outubro de 2014 nunca mais consegui usar. Ou seja, são 6 anos sem usar, mas ele definitivamente não vai ser doado. Mesmo que eu só pegue e olhe para ele, as lembranças que ele desperta são importantes demais para serem descartadas. Quem sabe um dia minha filha não vai chegar a usá-lo e ai sim posso passar adiante sem de fato me desfazer dele.

    Visto o casaco e ele fica uns 3 centímetros de conseguir abotoar. Felizmente ainda cabe nos braços, mas bem justinho. Os 20 kilos a mais depois de duas gestações fizeram um grande estrago no meu corpicho e hoje estou muito diferente do corpo que tinha aos 23 anos.

    Só de vestir me retorna claramente todas as emoções que senti em um dia fatídico que usei esse casaco em Charleston. O Ariel, atual marido, havia sumido em pleno carnaval no Brasil. O primeiro de muitos sumiços que ele já deu nesses quase 10 anos de relacionamento. Na época eu não sabia e esse era a primeira vez que ele fazia isso e bem no meio do Carnaval. Eu tinha falado com ele por Skype e havíamos dormido juntos, cada um no seu notebook, eu na Carolina do Sul nos EUA e ele em São Paulo, no Brasil. Mas depois no outro dia ele ia no bloco do Agora Vai do minhocão que começava no meio da tarde. Não falei mais com ele e ele sumiu. Não atendeu, não deu notícias, simplesmente sumiu. Não falou comigo a noite, nem dormiu na casa dele.

É claro que fiquei muito puta de raiva e fui chorar as pitangas para o Marino. Outro brasileiro que conheci em Charleston e um confidente que fiz logo que cheguei lá, pelo simples fato de falarmos a mesma língua, num país onde todos falam inglês. A barreira da língua ainda era muito forte para mim. Eu ainda travava quando ia falar com algum colega de classe. Com os professores e a linguagem formal era muito mais tranquilo conversar, mas quando algum outro aluno tentava falar comigo, todas as gírias e a linguagem informal me deixavam muito confusa e eu mal entendia uma palavra do que eles estavam falando. O Marino foi um suporte, um apoio familiar naquele lugar tão diferente e surpreendente que me deixou mais tranquila para começar minha jornada na terra do tio Sam.

Claro que o Marino é um capítulo à parte, uma figura inusitada. Seus mais de 2 metros de altura o destacam na multidão. Ele está literalmente acima de todos, pelo menos uns 20 cm da maioria e 40 cm acima de mim. Além disso ele é super magro, com uma bela barriga tanquinho. Poderia ser um cara esquisito, mas era bonito e sempre super estiloso. Vaidoso até demais, tinha uma autoestima tão elevada que só me fazia supor que no fundo ele escondia um sentimento de solidão e insegurança enormes.

    Bom, naquele fatídico dia em que o Ariel desapareceu no colo de alguma morena no Carnaval brasileiro, eu fiquei muito mal. Passei o dia ouvindo o Maroon 5, todas as músicas, mas mais especificamente a Payphone que era sucesso na época. Eu cantava o refrão nas alturas com ódio e muita tristeza.

“I'm at a payphone trying to call home
All of my change I spent on you
Where have the times gone, baby it's all wrong
Where are the plans we made for two

If Happy Ever Afters did exist
I would still be holding you like this
All those fairy tales are full of shit
One more stupid love song, I'll be sick”

Essa música era tão perfeita para o momento que basta eu ouvi-la hoje, 7 anos depois, que me vem à mente todas aquelas lembranças e sinto no âmago todas as emoções que vivi naquele dia.

Não me lembro agora se já estava combinado ou se decidimos no dia ir ao restaurante italiano que eu via da janela da residência estudantil, Kelly House, onde eu estava morando até o Ariel chegar.

Quando eu estou com raiva me arrumo para matar. Lembro claramente de ficar um tempão no banheiro da Kelly House escovando e alisando com chapinha meu cabelo cacheado. Ele ficava lindo escovado e brilhoso, era longo na época e tem muito volume. Escovar e alisar era muito trabalhoso e cansativo. Queimava a mão, a cabeça, suava, mas quanto mais difícil ficava, mais eu sentia que estava me vingando do Ariel de alguma forma. Eu sentia que ficando linda e deslumbrante para sair com outro cara estaria fazendo ele pagar por fazer aquilo comigo, mesmo que ele nunca soubesse o que eu tinha feito.

O cabelo ficou lindo com cachos apenas nas pontas e liso em cima. Coloquei um vestido listrado colado no corpo, um salto alto agulha, calça legging preta e meu casaco preto acinturado que me fez começar a escrever sobre essa lembrança. Aquele mesmo que agora eu vestia 7 anos depois e que não me fechava na cintura de jeito nenhum.

A cara de surpresa do Marino quando cheguei na casa dele vestida daquele jeito foi incrível. Foi como um carinho no meu ego ferido e raivoso. Ele soltou um “Uau” muito lisonjeiro e contei tudo que o maldito do meu namorido havia feito. Lembro claramente a sensação de ficar sentada e abraçada com ele no sofá, com as pernas por cima das pernas dele, o braço esquerdo dele atrás das minhas costas me envolvendo em um abraço, e eu com minha cabeça recostada no peito dele. Era como se estivesse quase sentada no colo dele. Foi tão gostoso que não queria sair dali nunca mais. Foi super reconfortante num momento tão difícil.

Qualquer passinho para frente meu teria nos levado para a cama. Até hoje fico pensando se eu não deveria ter dado esse passo. Vira e mexe tenho lapsos de arrependimento de não ter feito nada nesse sentido. Ele já havia demonstrado várias vezes que tinha interesse em mim, mas nunca havia me cantado ou falado algo mais contundente nesse sentido. Éramos bons amigos apenas, e isso era perfeito daquele jeito, principalmente naquele momento. No fundo, acho que se tivéssemos ido para cama teríamos estragado tudo. Levaria a um nível elevado de culpa e arrependimento que talvez eu não aguentasse esconder por tanto tempo.

Claro que me bate uma curiosidade de como teria sido. Será que ele seria tão bom de cama quanto ficava se gabando o tempo todo? Será que o ditocujo seria tão comprido e magro quanto ele? E como eu encaixaria naquele cara que era uns 40 cm mais alto do que eu? A verdade é que eu não sou assim, não conseguiria trair ninguém, muito menos usar alguém em uma vingança pessoal. E no fundo eu não sentia atração por ele. Minha ligação com o Ariel era muito forte e a nossa química na cama tão intensa que eu mesmo hoje, 9 anos depois, ainda me masturbo pensando no ditocujo do meu marido. Aff, me sinto um lixo por isso, mas é a verdade, fazer o que? Nem para eu pensar no Adam Levine ou congênere.

No fim ele tinha marcado com um amigo dele que tinha voltado de alguma viagem X. Era um americano típico, loiro e com um papo muito ruim. Passou o jantar inteiro falando de carro, viagem, de como ele tinha dinheiro e qualquer coisa assim. Nos primeiros 5 minutos tentei fortemente entender o que ele estava falando, mas depois fiquei entediada e só fingi que escutava todo aquele papo de pavão dele. Até hoje não sei se ele queria impressionar o Marino ou a mim com aquele papo. O Marino pareceu impressionado na hora, mas depois me confessou que ele ficava falando aquelas coisas para aparecer por que eu estava lá e o cara não era muito bom perto de mulheres. Deu para perceber nas primeiras duas frases que ele falou....kkkkkk

A noite foi ótima mesmo com o amigo mala. Sem ele teria sido melhor ainda, fato. O restaurante era lindo, todo decorado em estilo mediterrâneo. Do lado de fora tinha um jardim maravilhoso que eles iluminavam com luzes em bolas penduradas em cordas por todo o jardim, e o jantar era servido em mesas iluminadas por luzes de velas. Todo fim de semana tinha música ao vivo que se apresentava naquele espaço exterior.

Estávamos do lado da minha moradia, Kelly House, então eles me deixaram na porta e foram embora. Só lembro de ir dormir aquela noite com a sensação de conforto de estar aconchegada no colo do Marino. Nos momentos ruins não há nada melhor do que um abraço. 

Foto da entrada do Pane e Vino.

Foto do salão interno

Foto do espaço externo.

Abaixo fotos de uma das últimas vezes que fui com o Ariel ao Pane e Vino. E é assim que me lembro do lugar. Saudades...